sábado, junho 24, 2006

Lições de Timor

Expresso
24.06.2006

Jorge Sampaio (ex-Presidente de Portugal)

‘‘É tempo de Portugal assumir que tem uma relação especial com Timor-Leste com obrigações na construção do Estado ‘‘

A CRISE política e militar em Timor-Leste não foi uma surpresa. Em anos sucessivos, a diplomacia portuguesa, em conjunto com os responsáveis timorenses, empenhou-se em defender no Conselho de Segurança das Nações Unidas a permanência de uma missão militar e policial internacional em Timor-Leste durante um período de transição prolongado. Essa força de segurança, na qual Portugal sempre esteve preparado e disponível para participar, era penhor de um sucesso continuado na formação do Estado e na consolidação das instituições timorenses.

A redução gradual da missão das Nações Unidas em Timor-Leste, que acabou por dispensar a sua dimensão militar, tornou muito difícil evitar uma escalada de violência interna, mesmo a partir de uma crise menor. O aumento da conflitualidade manifestou-se logo no caso da crise nas relações entre a Igreja Católica e o Governo, e o cenário de escalada repetiu-se, com consequências dramáticas, na sequência da saída e da desmobilização de um número substancial de soldados, recrutados para as Forças de Defesa de Timor-Leste depois da independência. Quando as autoridades timorenses perderam o controlo da situação pediram à Austrália, a Portugal, à Malásia e à Nova Zelândia para enviarem as suas forças e restaurar a ordem pública em Díli. Na sequência dessa intervenção, o Conselho de Segurança veio reconhecer que a partida da sua missão militar tinha sido precipitada e está a avaliar a necessidade de enviar de novo uma força de segurança das Nações Unidas para Timor.

Portugal tem uma relação especial com Timor-Leste. Nesse sentido, o regresso da violência, que provocou entre nós sentimentos compreensíveis de tristeza e decepção, exige da nossa parte uma reflexão para tirar lições da crise timorense.

A primeira lição confirma a importância decisiva da dimensão de segurança nos processos de transição pós-conflito e, por maioria de razão, no processo de construção de um Estado com instituições democráticas depois de um longo período de guerra, de ocupação e de divisões políticas e sociais internas. Sem uma garantia efectiva de segurança, nenhum processo político tem condições mínimas de estabilidade. No caso de Timor, tal como nos casos da Bósnia-Herzegovina, do Kosovo ou do Afeganistão, essa garantia só pode ser assegurada por uma presença militar internacional.

Essa presença, por sua vez, significa a constituição de uma força multinacional, onde a participação das democracias ocidentais se tem revelado indispensável, não só pela qualidade profissional das suas forças armadas, como pela sua disponibilidade em estar presente nos teatros de conflito, mesmo quando os seus interesses imediatos não estão postos em causa. Em Timor, desde a formação da INTERFET, em Setembro de 1999, a Austrália tem tido uma intervenção insubstituível na constituição das forças internacionais. Desde esse momento, apesar de todos os obstáculos, Portugal tem procurado consolidar uma relação de cooperação política e militar com a Austrália, cujo beneficiário é, obviamente, Timor-Leste. As peripécias das últimas semanas mostram a necessidade de manter essa convergência, indispensável para a restauração da segurança no terreno. No mesmo sentido, as duas democracias devem poder conjugar os seus esforços no sentido de obter do Conselho de Segurança um compromisso firme para enviar uma nova missão militar das Nações Unidas para Timor-Leste.

A segunda lição sublinha a importância decisiva da unidade dos dirigentes timorenses para garantir a ordem constitucional e o respeito pelas instituições democráticas em Timor-Leste. Ninguém tem dúvidas acerca da intensidade da competição política e institucional, a qual só podia aumentar com a proximidade do próximo ciclo eleitoral. Porém, a credibilidade interna e externa do regime timorense depende da vinculação de todos os seus responsáveis ao cumprimento dos princípios constitucionais, que definem as regras e estabelecem os limites para lá dos quais os conflitos políticos excedem um quadro de legitimidade.

A crise, como seria de esperar, fortaleceu o lugar central da instituição presidencial, nomeadamente no domínio das responsabilidades do Presidente da República como garante da independência nacional e da ordem constitucional. Essa evolução, resultante da crise, vai pôr à prova a estabilidade constitucional em Timor-Leste, bem como as qualidades políticas dos seus principais dirigentes. Temos obrigação de os conhecer bem e de reconhecer a sua autoridade, não só como representantes eleitos, mas também como responsáveis pela resistência e pela fundação do Estado. As provas da democracia são menos heróicas do que as lutas do passado, mas são as mais importantes no presente. O critério essencial da avaliação dos responsáveis timorenses passou a ser a sua capacidade para consolidar o regime constitucional da democracia timorense.

A terceira lição obriga-nos a reconhecer a virtude da moderação, constantemente ausente dos debates portugueses acerca de Timor-Leste, antes e depois do referendo de autodeterminação, antes e depois da independência, antes e depois das últimas crises. Os militantes mais exaltados da causa timorense passaram a ser os defensores mais determinados de uma retirada portuguesa, os que queriam pôr a questão de Timor-Leste no centro da política externa portuguesa proclamam agora a completa ausência de interesses nacionais de Portugal na pequena meia-ilha nos confins da Ásia Oriental.

É tempo de Portugal assumir que tem uma relação especial com Timor-Leste, com obrigações correspondentes num processo lento de construção do Estado, incluindo responsabilidades no domínio da segurança. No entanto, deve reconhecer também que as suas responsabilidades são limitadas e circunscritas e, portanto, têm de ser partilhadas, nomeadamente com a Austrália e com as Nações Unidas. No mesmo sentido, Portugal aceitou assumir compromissos políticos específicos com as autoridades timorenses, designadamente no sentido de contribuir para tornar o português uma das línguas oficiais de Timor-Leste, o que exige um esforço considerável na preparação dos professores timorenses, bem como na formação superior das elites políticas e funcionais. Por último, Portugal deve assumir, sem complexos, a sua parte de interesses económicos e empresariais, que são relevantes para consolidar as relações bilaterais.

Essas orientações políticas têm tudo a ver com os interesses nacionais portugueses. Desde logo, servem para consolidar a relação de Portugal com Timor-Leste, que é anterior à crise de descolonização e tem de continuar para lá dos problemas da transição. A criação do Estado timorense foi e é um interesse português, para lá do respeito pelo direito de auto-determinação, tal como é relevante poder contar com um Estado da Ásia do Sudeste como membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Por outro lado, a presença das forças militares e policiais portuguesas confirma a vontade de Portugal ser reconhecido como um produtor de segurança internacional, nomeadamente pela sua participação nas missões de paz na Bósnia-Herzegovina, no Afeganistão e em Timor. Por último, muito embora o argumento não tenha pertinência para os que desistiram de ter uma ambição nacional, a democracia portuguesa tem condições para desenvolver uma dimensão asiática da sua política externa e Timor-Leste é parte integrante desse desígnio, cuja relevância se tornou óbvia nos últimos anos.

O ex-Presidente da República realizou a última visita do seu mandato a Timor-Leste em Fevereiro de 2006.

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Traduções

Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.

Obrigado pela solidariedade, Margarida!

Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006

"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
 

Malai Azul. Lives in East Timor/Dili, speaks Portuguese and English.
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