sexta-feira, abril 13, 2007

Refugiados: "Aqui não há ladrões. Aqui só há fome"; do outro lado da vida em Díli

Público – 13 de Abril de 2007
À espera de arroz e de uma casa no Jardim de Pelabahar

Paulo Moura, em Díli

Em Díli, 25 mil pessoas foram expulsas de suas casas durante a crise de 2006 e vivem em campos de deslocados. Comem arroz, quando há, e são um foco de instabilidade e violência
Leopoldo é rico. Querubim é pobre. "Gostava de ser barbeiro", sonha Querubim. Querubim Miranda, de 25 anos, casado com Ajina, zarolha de nascimento. "Na nossa casa temos tudo": sala, cozinha, dois quartos, despensa. Ajina sorri, um olho para cada lado. Parece estar contente.
Querubim tem um defeito na fala, mas fala várias línguas. Ajina está grávida. "Este é o nosso quarto": um buraco no meio dos panos. Toda a casa é de plásticos e lonas. Nem sequer é uma tenda. Ao todo, uns 10 metros quadrados. "Neste quarto dorme o meu irmão e a minha irmã, que é esta": Akela, cor de poeira, cabelo de luz. Tem cinco anos e cara de mulher madura e linda.
Como pode ser irmã de Querubim? A sala tem um caixote no chão. Uns tachos a um canto. Uma fogueira com o arroz a cozer, na rua. À porta, Querubim Miranda colocou um grande cartaz de madeira a dizer: "Dame". Paz, em tétum. Nem ele nem Ajina trabalham. Um dia será barbeiro. Agora não há empregos em Díli. Resta esperar. Comer o arroz que o Programa Alimentar Mundial traz regularmente. Não todos os dias. Daqui a dois meses vai nascer o bebé. Querubim Miranda sempre foi pobre.

Leopoldo Pinto é o homem mais rico do Jardim de Pelabahar. Tem três mikroletes (os pequenos autocarros de Díli) e um táxi. Todos parados. Antes de ser empresário já era um homem importante. Um homem que soube gerir uma carreira. Foi militar do Exército Português desde 1972. Em 1975 entrou para a Fretilin, para combater na guerra civil, contra a UDT. Em 1979 foi apanhado nas dissidências internas da Resistência e foi para a Indonésia. Em 1990 voltou a trabalhar para a Resistência, na clandestinidade. Em 1999 foi coordenador dos observadores nacionais ao referendo da independência. Depois trabalhou com o Presidente Xanana Gusmão, como subchefe do secretariado de Segurança do Conselho Nacional da Resistência Timorense (CNRT). Daí aos negócios foi um passo. Comprou as mikroletes e o táxi. Aos 50 anos, era um cidadão próspero e bem relacionado na mais jovem nação do mundo.

"Ela está a estudar Economia e fala muito bem inglês": Josefa dos Santos, de 22 anos, filha de Leopoldo. Está a cozinhar, na grande casa da família, no Jardim de Pelabahar. Além de Leopoldo e a mulher, vivem aqui Josefa e os seus seis irmãos, mais seis sobrinhos. Quartos para todos, em redor da sala, com televisão, e kitchenette a um canto. Tudo de lonas e plásticos, uma tábua a fazer de mesa, uma fogueira para cozinhar. Está uma panela ao lume. Com quê? Josefa não quer dizer. "É muito tímida": Leopoldo tem orgulho na filha. Estuda Economia e fala inglês. A casa é uma espécie de compound, com passagens e corredores, plásticos e estacas. "Todos os meus filhos estudam. Uns na escola, outros na universidade": mas Josefa, vestido justo, olhar directo e frio, é a alegria do seu pai. "É muito tímida": é arroz o que está a cozinhar? Nada. Só quando Leopoldo, por momentos, se afasta para um dos aposentos de plásticos e tábuas, Josefa dos Santos, que estuda Economia e fala inglês, dá um passo brusco em frente, de mão estendida, e dispara: "Money!"

Leopoldo Pinto e Querubim Miranda vieram para o Jardim de Pelabahar na mesma altura, em Abril do ano passado, tal como todas as 3700 pessoas deste campo de deslocados. Viviam em Fatumata, na zona do Bairro Pité, em Díli. Leopoldo há 20 anos, Querubim há 10. "De repente, os nossos vizinhos, pessoas com quem trabalhávamos, com quem comíamos, ameaçaram-nos de morte, se não saíssemos dali. Disseram que nós éramos Loromono, que tínhamos de partir":

Leopoldo acha que a crise foi forjada por alguém do Governo, com o propósito de roubar. Ele e todos os actuais vizinhos são oriundos da região de Baucau, na Zona Leste do país. Até então, isso nunca foi problema para ninguém. Depois da crise dos "peticionários", tornou-se estigma.

"Elementos da Polícia Militar, amigos do major Alfredo (Reinado), vieram a minha casa, com armas automáticas, para matar toda a família. Dois sobrinhos meus morreram. Tivemos de fugir.

Dias depois, soube que a minha casa foi incendiada": entre 100 mil e 150 mil pessoas foram obrigadas a abandonar os seus bairros, segundo a UNMIT (25 mil, em Díli). Aproveitando a teoria do conflito entre Este e Oeste do país, surgida durante a crise dos "peticionários", muita gente matou, roubou, ocupou casas e terrenos. As mikroletes e o táxi ficaram em Fatumata. "Só nos resta esperar, aqui, até que as comissões descubram os culpados e os prendam": em cima da televisão, Leopoldo tem um calendário.

"Agora não podemos regressar ao nosso bairro": Querubim fica nervoso e ainda mais quando fala disto. "Andam lá grupos de civis armados, com metralhadoras. Dizem que Loromonos não voltam mais". Uma vizinha entra na tenda, com um bebé ao colo. É Yayu, mulher do irmão de Querubim. Yayu é indonésia. Ajina olha para ela e para Querubim ao mesmo tempo, mas só sorri para Querubim. "Foi o arroz. Assaltaram o camião do arroz": Yayu tem cara de mulher e corpo de criança. "Quem foi? Onde está o meu irmão?": Querubim fala em bahasa indonésio, para que a cunhada possa dizer a verdade. "Não sei": um grupo de homens tentou assaltar o camião de arroz do WFP, e Yayu desconfia que o marido é um deles.

Ouvem-se dois tiros. Os deslocados desatam a fugir. Esvazia-se num ápice o mercado onde grupos de rapazes rondam, sem poderem comprar, os pacotes de bolachas, os chocolates e os cigarros expostos nas bancas de madeira. Correm as mulheres que lavavam roupa junto à fonte do jardim. Desaparecem todos os ociosos que enchem as ruas e avenidas entre as tendas dos IDP (Internal Displaced People). Instala-se a confusão em frente às casas de banho públicas onde não há água, junto ao monumento à Senhora de Fátima, em volta da cova onde se despeja o lixo.

"Foram os F-FDTL (os militares timorenses). Dispararam tiros para o ar. Dizem que somos ladrões": dois polícias do Bangladesh ouvem a queixa de Alaka, um dos habitantes do campo. Não entram no emaranhado de trapos e lama. "Onde estão os ladrões?": Leopoldo Pinto, o rico, já vem a caminho, para lhes responder, Querubim Miranda, o pobre, para traduzir. "Aqui não há ladrões. Aqui só há fome".

1 comentário:

Anónimo disse...

Espero que os candidatos à PR possam ler com atenção este artigo.
Alfredo
Brasil

Traduções

Todas as traduções de inglês para português (e também de francês para português) são feitas pela Margarida, que conhecemos recentemente, mas que desde sempre nos ajuda.

Obrigado pela solidariedade, Margarida!

Mensagem inicial - 16 de Maio de 2006

"Apesar de frágil, Timor-Leste é uma jovem democracia em que acreditamos. É o país que escolhemos para viver e trabalhar. Desde dia 28 de Abril muito se tem dito sobre a situação em Timor-Leste. Boatos, rumores, alertas, declarações de países estrangeiros, inocentes ou não, têm servido para transmitir um clima de conflito e insegurança que não corresponde ao que vivemos. Vamos tentar transmitir o que se passa aqui. Não o que ouvimos dizer... "
 

Malai Azul. Lives in East Timor/Dili, speaks Portuguese and English.
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